http://dx.doi.org/10.24016/2016.v2n2.39

ARTÍCULOS ORIGINALES

 

 

Investigando em História da Psicologia: contribuições metodológicas

 

Investigating the history of psychology: methodological contributions

 

 

Ana Maria Jacó-Vilela1 *, Adriana Amaral do Espírito-Santo2, Filipe Degani-Carneiro2, Lidiane de Oliveira Goes3 & Maira Allucham Goulart Naves Trevisan Vasconcellos2

 

1 Doutora em Psicologia, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Laboratório de História e Memória da Psicologia – Clio-PsychéUniversidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil.

2 Doutorando em Psicologia

3 Doutora em Psicologia

* Correspondência: jaco.ana@gmail.com

 

Recibido: 14 de noviembre de 2016.
Aceptado: 13 de diciembre de 2016.

 

COMO CITARLO

Jacó-Vilela, A., Espírito-Santo, A., Degani-Carneiro, F., Goes, L. & Vasconcellos, M. (2016). Investigando em História da Psicologia: contribuições metodológicas. Interacciones, 2(2), 123-134. doi: 10.24016/2016.v2n2.39

 


RESUMO

Este artigo tem por objetivo apresentar discussões metodológicas acerca da pesquisa em História da Psicologia. Utiliza como eixo norteador da compreensão de história as perspectivas teóricas e metodológicas da Nova História. Esta, em sua crítica à história tradicional, propõe a análise das condições de construção dos fatos. Uma de suas consequências foi a ampliação do campo do documento histórico, com a utilização de outras fontes que não os textos oficiais. Na História da Psicologia, essa ampliação significou a preocupação com o caráter científico das pesquisas históricas e a reflexão sobre os modos de pensar e fazer Psicologia, considerando o contexto e as vozes daqueles que ajudaram a construi-la enquanto conhecimento e prática profissional. No caso do Brasil, diferentes iniciativas e laboratórios têm reafirmado a importância do debate sobre a organização sistemática e análise cuidadosa do material de pesquisa. Aqui são referidos brevemente alguns exemplos de investigação para demonstração deste tipo de proposta.

PALABRAS CLAVE

História da Psicologia; Memória; Metodologia; Fontes de pesquisa; Nova história.


ABSTRACT

This article aims to present methodological discussions about the research on the History of Psychology. Here it is used as a guiding axis in the comprehension of history, methodological and theoretical perspectives of the New History. In its critical to the traditional history, the New History proposes the analysis of the conditions of construction of the narratives about the facts. One of its consequences was the expansion of the historical document field, with the utilization of other sources, different than official texts. In the History of Psychology, that expansion meant the concern about the scientific type of historical researches and the considerations about the ways of thinking and making Psychology, considering the context and the voices of those who helped to build it as knowledge and professional practice. In the case of Brazil, different initiatives and laboratories have reaffirmed the importance of the debate about the systematic organization and the careful analysis of the research material. Some examples are referred here, so as to demonstrate this kind of proposal. 

KEYWORDS

History of Psychology; Memory, Methodology; Sources of research; New history.


 

O presente trabalho apresenta alguns marcadores teóricos e metodológicos importantes para pesquisadores e leitores interessados na historicização do campo psicológico. Inicialmente, apresentaremos reflexões oriundas do campo da História, notadamente aquelas fornecidas pela denominada Escola dos Annales. Dentre tais reflexões, examinaremos a ampliação da noção de “documento” e sua centralidade no desenho metodológico do investigador em história da psicologia. Apresentaremos linhas gerais do “estado da arte” da historiografia da Psicologia no Brasil e, por fim, alguns relatos breves de pesquisas em desenvolvimento no Laboratório de História e Memória da Psicologia Clio-Psyché, ao qual pertencemos.
Existe uma grande discussão a respeito do que é a História, quais seus objetivos, como e por quem ela é feita e suas relações com a memória e o passado. Tal discussão pode ser observada a partir da passagem da história tradicional para a História Nova desde as primeiras décadas do século XX, como veremos mais abaixo. Enquanto a primeira trouxe para o âmbito dos estudos históricos a compreensão da História enquanto uma disciplina, isto é, um saber autônomo, com objeto próprio, regras próprias de formação profissional, a nova história constituiu uma ruptura principalmente ao propor novas perspectivas metodológicas, além de nova compreensão do que pode ser historicizado (o objeto da narrativa) e das fontes a serem utilizadas pelo historiador.
Numa referência a Heródoto, apresentado por Cícero como “o pai da história”, diríamos que este opõe ao poeta contador de lendas – Homero - o trabalho de investigação realizado por um personagem até então desconhecido, o histor, que tem por objetivo retardar o desaparecimento dos traços da atividade humana. Com Heródoto, temos uma nova forma de olhar o passado dos homens: não são mais os deuses e as musas que se expressam para contar o passado.

A história, como um discurso específico, nasceu de uma lenta emergência e sucessivas rupturas com o gênero literário, como uma forma de busca da verdade. (...) Na verdade, celebra-se não mais a lembrança das grandes façanhas, mas procura-se a conservação na memória daquilo que os homens realizaram, glorificando não mais os grandes heróis, mas os valores do coletivo dos homens, no quadro das cidades (Dosse, 2003, p. 13-14).

De acordo com Châtelet (1974), a História, enquanto um empreendimento com pretensões científicas, data do final do século XVIII e início do século XIX e foi se constituindo com base em pressupostos, que com o tempo foram classificados como pertencentes a uma história tradicional ou positivista, a saber: o enfoque no registro de grandes feitos ou grandes batalhas, sempre protagonizados por grandes homens. A história chamada positivista constitui, assim, o que Châtelet chamou de “jornalismo retrospectivo”, dos quais um dos nomes de destaque foi o prussiano Leopold Von Ranke (1795-1880).
A história positivista também foi chamada de história episódica ou événementielle, termo que ficou conhecido após sua utilização por F. Braudel (Burke, 2003). Privilegiando uma noção objetivista sobre o “acontecimento” histórico, esta abordagem histórica enfatiza a busca da origem dos fatos como objetivo, bem como sendo seu fim último o estabelecimento da Verdade sobre tais fatos.
Esta objetividade se expressa na ênfase no retorno aos documentos oficiais, tais como atas, leis, tratados, anuários: tratam-se, em geral, de textos intencionalmente escritos para dar vulto a determinados acontecimentos categorizados como relevantes e dignos de registro. De acordo com Le Goff (1996), a história positivista representa o triunfo do documento como dado objetivo, utilizando-o como prova ou testemunho escrito do que aconteceu. Empreende, assim, uma tentativa de remontar, por meio dos documentos, uma cronologia sequencial que evidencie uma continuidade coerente e necessária entre ontem, hoje e amanhã.
Ainda hoje são encontrados com bastante frequência trabalhos que se consideram (ou são considerados) como históricos utilizando este tipo de referencial, em que se busca descobrir heróis, fatos e datas, como se o mundo não fosse dinâmico e as coisas acontecessem pontualmente em um só tempo e lugar, desconsiderando-se o processo e as condições que possibilitam os fatos.
A grande ampliação desta concepção de história aconteceu num momento em que o saber científico passava por importantes transformações no âmbito das ciências humanas e sociais: a afirmação de novas ciências, que ultrapassaram o círculo acadêmico e ganharam novo vulto, como sociologia, antropologia, etologia etc.; a renovação das ciências tradicionais, manifestada pelo acréscimo do epíteto “novo” ou “moderno”, como a matemática moderna; a interdisciplinaridade, que resultou em composições como antropologia histórica, psicolinguística e sociobiologia, entre outras. (Le Goff, 1998).
Assim, a nova história, identificada com a fundação da revista francesa “Annales d’histoire économique et sociale”, em 1929, por Lucien Febvre (1878-1956) e Marc Bloch (1886-1944) já começa com uma crítica à história até então existente – e que passa a ser entendida como “tradicional” - e sua concepção de fato histórico, entendendo-o como uma construção/invenção do historiador a partir dos documentos.
Burke (2003) identifica três gerações na História Novai A primeira, de 1929 a 1940, tem a marca dos fundadores dos Annales, caracterizando-se pela intenção de interdisciplinaridade. A segunda é representada por Fernand Braudel (1902-1985) e surge após a Segunda Guerra Mundial, definindo métodos e categorias que hoje são prontamente identificados com a História Nova, como o tempo de longa duração. A terceira geração, a partir de 1968, se caracteriza notadamente pela expansão do escopo de objetos, fontes e modelos de narrativas sobre o passado.
Tal expansão gira em torno fundamentalmente de uma nova concepção sobre o documento. As gerações anteriores se caracterizaram ainda por um excessivo apego aos “documentos oficiais” e à história política, militar, bem como a econômica, como temáticas de predileção. A partir da terceira geração, novas fontes de diversos tipos são consideradas como ferramentas legítimas de construção da narrativa histórica: imagens, registros de nascimentos e óbitos, correspondências, diários. Estas novas fontes permitiram o enfoque de novos sujeitos (especialmente os pertencentes às classes populares e/ou até então não estudados) e de novas formas de contar o passado.
Um exemplo é o clássico História social da criança e da família, de Philippe Ariès (1981), em que o autor utiliza a análise de pinturas medievais e modernas para, a partir de tais representações sobre as crianças, desnaturalizar o conceito de infância. Outros autores representativos da chamada terceira geração são Jacques Le Goff e George Duby (ambos com estudos sobre a Idade Média europeia), Jean Pierre Vernant (estudioso da Grécia Antiga e inventor do que muitos denominam “psicologia helênica”), Jacques Revel (com estudos críticos sobre história e historiografia), Roger Chartier (com estudos sobre livros) e Michelle Perrot (com estudos sobre a mulher) .
Em suma, a História Nova deslocou a ideia de narrativa de acontecimentos, onde documentos oficiais eram a única fonte de reconstrução de um passado cristalizado e glorioso, para uma história que parte de um problema (estreitamente ligado ao contexto presente do historiador) e recorre aos mais variados tipos de documentos para resolvê-lo. Ao invés de uma história política e militar, dos grandes homens e grandes batalhas, o historiador busca recontar histórias das diversas atividades humanas, valorizando o cotidiano.
Outra transformação operada pela História Nova, especialmente importante para o campo “psi”, foi a abertura para a interdisciplinaridade. Se todos os fenômenos da vida humana e social são objetos “dignos” da reflexão histórica, faz-se necessário atentar para as contribuições dos mais diversos saberes, “meticulosa e metodicamente” avaliados, como a sociologia, a psicologia, a antropologia e a filosofia (Rodrigues, 1998, p. 47).
De acordo com Le Goff (1996), a revolução documental ocorreu tanto no âmbito qualitativo quanto no quantitativo. Este último pode ser exemplificado pela utilização de registros paroquiais de nascimentos, óbitos e casamentos, inaugurando a utilização de grandes massas documentais e alterando o estatuto do documento, que passa a ser considerado sempre em relação às condições pessoais e institucionais de sua “produção”. A implementação do uso dos computadores também foi importante para isso, permitindo a instalação de bancos de dados e facilitando, assim, a análise estatística.
Diante da proposta de novos problemas, novos objetos e novas abordagens, esta nova história se ocupou, assim, de objetos que antes eram considerados como não tendo história, como o corpo, alimentos, odores, bem como se dedicou a todos os tempos (Rodrigues, 1998). Como dito acima, um de seus maiores méritos foi a ampliação do campo do documento histórico, multiplicando a possibilidade de fontes de pesquisa: não apenas textos oficiais, mas de todos os tipos, incluindo os mais “informais”, não necessariamente produzidos conscientemente pelo homem, como cartas pessoais e diários; não apenas documentos escritos, mas qualquer produção humana que permitisse ao historiador recontar uma história de detalhes, como documentos orais, fotografias, estatísticas, instrumentos, construções, mapas, entre tantas outras possibilidades, que podem variar tanto quanto a criatividade do historiador:

A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas pode fazer-se sem documentos escritos, quando não existem. (...) com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem.” (Febvre como citado em Le Goff, 1996, p. 540)

Segundo Burke (1992), não é simples definir a Nova História. Pelo contrário, ela é mais bem definida por aquilo que não é, ou seja, pelas ideias e conceitos aos quais se opõe. Assim, o viés da história passa de uma “visão de cima”, concentrada nos grandes feitos de grandes homens, para uma “visão de baixo”, de pessoas comuns, dos vencidos, que geralmente ficavam de fora das narrativas. Desvia, então, o foco do Homem para os homens, no plural; da mesma forma, em vez de Civilização, civilizações; propõe uma História problemática, e não automática, preocupada em compreender o tempo presente; privilegia o tempo de longa duração ou grandes permanências, fazendo uma história social das classes, do poder e dos poderes (Le Goff, 1998).

 

Metodologia em historia da psicologia, ou os cuidados ao lidar com as fontes

A pesquisa histórica é, muitas vezes, negligenciada no Brasil, e isso acontece também quando falamos em psicologia. É muito comum vermos trabalhos apresentando temas importantes para nossa teoria e prática, porém sem uma contextualização no tempo e espaço, sem uma compreensão sobre as condições que tornaram possível chegarmos à atualidade da forma como estamos. Encontramos também, com frequência, uma contextualização que remete à Europa ou aos Estados Unidos, e não à realidade de nosso próprio país.
Na década de 1960, as discussões sobre o método em História da Psicologia ocuparam um lugar central neste campo (Klappenbach, 2014). A preocupação com o caráter científico das pesquisas históricas apontava que era necessário muito mais que o conhecimento dos conteúdos em História da Psicologia, mas o aprofundamento metodológico para analisar e interpretar o objeto histórico.
Schultz & Schultz advertem que os dados da História não podem ser reproduzidos, no presente, exatamente como aconteceram. Em verdade, eles se apresentam a nós como “fragmentos de eventos passados, tais como descrições feitas por participantes ou testemunhas, cartas e diários, ou relatos oficiais” (Schultz & Schultz, 1992, p. 22).
Por isso, na construção de narrativas sobre fatos do passado (notadamente, em nosso caso específico, a História da Psicologia), a ferramenta mais utilizada é a análise documental. Rosa, Blanco & Huertas (1996) afirmam que as técnicas de documentação servem para termos acesso às questões de interesse de estudo, para nos mostrar como e onde podemos conseguir os materiais necessários, além de permitir recriar dados úteis para a descrição e explicação do passado.

A documentação consiste, na prática, em guardar ordenadamente e com critérios as informações colhidas da leitura de livros, da assistência às aulas, da participação em conferências e seminários, assim como todo material relevante encontrado na pesquisa bibliográfica. (...) Documentar é organizar o material que tem importância significativa para a pesquisa que se realiza. E essa importância está relacionada com o objetivo primeiro do estudo (Almeida Júnior, 1988, p. 111).

O objetivo ao qual a autora se refere pode ser o levantamento bibliográfico, etapa obrigatória de qualquer pesquisa (que não será abordada aqui), ou a análise do próprio documento, ou seja, quando ele será o elemento efetivamente analisado, depois de devidamente organizado e catalogado, constituindo um “testemunho” ou “discurso” de uma época (Barros, 2005).
Rosa, Huertas & Blanco (1996) chamam a atenção para a importância da utilização de evidências empíricas, metodologicamente justificadas pelo historiador. Estas evidências podem se revelar através de diversos tipos de documentos.
Na pesquisa documental propriamente dita, o documento é sinônimo de fonte histórica ou fonte primária. Segundo Marconi e Lakatos (2002), a fonte primária se caracteriza por ser aquela referente ao tempo dos fatos a serem analisados, ou os autores que realizaram os primeiros trabalhos sobre um determinado assunto ou elaboraram um conceito/teoria. Porém, conforme explicitado anteriormente, a fonte primária pode se constituir não apenas por documentos escritos, mas por qualquer tipo de documento, numa concepção não tradicional: documentos oficiais, textos não oficiais, iconografia, construções, instrumentos, aparelhos, etc.
A fonte secundária, por outro lado, alude aos trabalhos produzidos posteriormente, que fazem referência a outros trabalhos, anteriores (e primários) para embasamento da questão. O conteúdo desse tipo de fonte, secundária ou “de segunda mão”, pode vir na forma de crítica do trabalho original, comentário, resumo ou análise (Marconi & Lakatos, 2002).ii
Rosa, Huertas & Blanco (1996) acrescentam um terceiro tipo de classificação de fonte, a terciária, que se refere àqueles documentos em que há indicações sobre a forma e o local onde as informações sobre as fontes primárias e secundárias podem ser localizadas. Exemplos desse tipo de fonte são os dicionários, enciclopédias, guias bibliográficosiii Em contrapartida, esses autores relatam que os documentaristas preferem trabalhar com definições mais generalizadas de documentos, classificando-os apenas em primários e secundários. Nesse caso, os documentos secundários corresponderiam às chamadas fontes terciárias.
Cabe neste momento assinalar que a classificação entre fontes primárias, secundárias e terciárias é algo funcional, como afirmam Rosa, Huertas & Blanco (1996), ou seja, a relatividade da fonte advém do objeto de pesquisa de cada estudo. Sendo assim, para um autor um trabalho pode ser considerado como fonte primária ou fonte secundária, dependendo de seus objetivos.
Rosa, Huertas & Blanco (1996) apontam ainda que os especialistas costumam empregar, em vez de “fonte”, o termo “documento”, os documentos primários englobando as fontes primárias e secundárias e os documentos secundários se referindo às fontes terciárias.
Este problema de nomenclatura é uma discussão também levantada por Jenkins. Este autor entende que, ao empregarmos a palavra “fonte”, estamos pressupondo a possibilidade de uma volta à verdade dos fatos: “Assim, prioriza-se a fonte original, faz-se dos documentos um fetiche e distorce-se todo o processo de produzir história.” (Jenkins, 2001, p. 79). Ou seja, para o autor as fontes são somente vestígios do passado, manipulados pelo historiador, e não reveladoras de uma verdade absoluta.
Assim, apoiando-se em LaCapra (1983), Rosa, Huertas & Blanco (1996) fazem uma distinção sobre o uso do texto (em sentido amplo, como referido acima) como obra ou como documento. Qualquer texto pode ser utilizado com qualquer dos dois propósitos, dependendo para tanto menos de sua natureza e mais da intenção do pesquisador: “como obra si añade significado de manera directa al problema conceptual que abordamos, y como documento si se usa como referencia para contextualizar, en cualquiera de los sentidos posibles, dicho problema.” (Rosa, Huertas & Blanco, 1996, p. 74).
Embora, em alguns casos, as fontes primárias sejam inacessíveis, sua busca é primordial para os que desejam desenvolver um trabalho consistente, especialmente em nível acadêmico, pois as fontes secundárias, por mais que tragam uma visão coerente com a do autor original, ainda consistem num recorte perpassado pela lente de outra pessoa.
A escolha, coleta e análise desses documentos exigem grande rigor científico, mas, ao mesmo tempo, não possuem uma fórmula predeterminada, não têm uma regra universal a priori. Segundo Vieira, Peixoto e Khoury (1989), a preocupação com modelos e técnicas universais está associada a uma herança da história positivista, à qual subjaz a pressuposição de uma neutralidade da técnica.
Por outro lado, quando falamos em documentação, fica difícil enumerar instrumentos pré-construídos ou determinar um roteiro já pronto. Isso porque a escolha da técnica e do(s) instrumento(s) a serem empregados vai depender do objeto da pesquisa, do material que se deseja coletar, dos agentes sociais, dos pressupostos do pesquisador e dos propósitos da investigação (Rosa, Huertas & Blanco, 1996; Vieira, Peixoto & Khoury, 1989).
A técnica vai, assim, mediar as relações entre a teoria adotada pelo pesquisador e as evidências (documentos) encontradas:

O historiador que busca compreender e recuperar o movimento, a contradição, e que entende que esta compreensão é dada pela mútua determinação do sujeito que investiga e do objeto investigado, só pode entender por método o diálogo entre teoria e evidências. Isto implica que os procedimentos não sejam definidos a priori, ou externamente, mas sim no decorrer da pesquisa, fruto do próprio diálogo (Vieira, Peixoto & Khoury, 1989, p.44, grifo no original).

Jacó-Vilela também atenta para a imprevisibilidade da investigação histórica, “que se diversifica em encontros impensáveis e coincidências despropositadas: enfim, em descobertas que nos vão apontando caminhos (métodos?) invisibilizados a princípio” (Jacó-Vilela, 2001a, p. 178, grifo no original).
É esta imprevisibilidade que pode fazer surgir documentos inesperados, mudando todo o rumo da pesquisa anteriormente proposta, ou pode mesmo impossibilitar a execução do projeto, seja pela inacessibilidade do acervo, seja pela constatação de sua não autenticidade/veracidade/importância, ou outros tantos motivos. Schultz & Schultz (1992) lembram que os documentos históricos podem se perder, ser suprimidos deliberadamente, distorcidos por interesses pessoais ou traduzidos incorretamente. No Brasil, em especial, a destruição e o abandono dos acervos são comuns, como apontam Campos & Massimi (1998). Podemos acrescentar ainda os recursos (in)disponíveis para realizar levantamentos de grandes acervos ou mesmo os empecilhos encontrados para se chegar a determinado material, por mais que esteja completamente preservado, entre tantos outros fatores que fazem da reconstrução histórica um trabalho dinâmico.
Em Benjamin Jr. (1998), encontramos um relato que exemplifica brilhantemente dificuldades que podem ocorrer na busca por documentos, especificamente quando o acervo está em posse de familiares do personagem que se quer investigar:

Talvez nada seja mais frustrante que descobrir a localização de documentos pertencentes a uma importante figura na história da psicologia, e até obter uma idéia geral dos tesouros ainda disponíveis em ótimas condições, apenas para ouvir a informação de que os documentos devem permanecer inacessíveis “porque papai queria que fosse assim” (Benjamin Jr., 1998, p. 266).

Uma das formas de se minimizar os problemas antes da execução da pesquisa é realizar inicialmente uma caracterização do tipo de documento, tarefa necessária para uma fundamentação teórica consistente, tanto no que diz respeito ao tipo de história que se pretende fazer, quanto para entender a própria história daquele tipo de documento. Exemplos deste cuidado podem ser: em uma investigação que utilize revistas científicas, investigar inicialmente o surgimento de revistas científicas especializadas; em investigações sobre determinado acervo situado em uma instituição, investigar a história da instituição onde está guardado. Tais procedimentos permitem que sejam esboçadas as formas mais viáveis de se chegar até o documento ou mesmo encontrar outras fontes até mais relevantes para o trabalho pretendido. Zenha (2002) lembra, por exemplo, a importância de se conhecer a evolução de técnicas de fotografia para trabalhar com este tipo de material, quando chama a atenção para uma foto da Avenida Champs Elysées, em Paris, no início do século XX, quase completamente deserta, a não ser por um engraxate e seu cliente. Naquela época, era necessário um longo tempo de exposição para que fosse feita a captura da imagem e, por isso, qualquer elemento que estivesse em movimento não saía na fotoiv.
Dito isso, é possível perceber que existem diversas discussões sobre as formas de se coletar documentos e dados históricos. Contudo, como afirmam Rosa, Huertas & Blanco (1996), ainda não existe nenhuma aproximação sistemática de como analisar um texto histórico no campo da Psicologia, razão pela qual os autores apresentam uma proposta de análise baseada na Análise do Discurso. Esta se trata de uma forma das diferentes formas de interpretação dos dados – não basta encontra-los e descrevê-los, é preciso analisa-los – , tema que não tratamos neste texto.

 

Investigando a História da Psicologia - alguns resultados

De acordo com Rodrigues (1998), é fundamental, na formação do psicólogo, a utilização de ferramentas do campo da História, no sentido de desnaturalizar saberes e práticas e produzir novas linhas de fuga. É no campo da história da Psicologia (embora isto não exclua outros campos) que os psicólogos vêm se utilizando, em grande escala, das fontes históricas e dos recursos tornados possíveis a partir da emergência da História Nova e, posteriormente, do trabalho de Michel Foucault. Estas perspectivas geraram mudanças na forma de se fazer história, pois, como corroboram Brozek & Massimi (1998):

O aparecimento no início do século XX de uma preocupação historiográfica no campo da psicologia seguiu a tendência hegemônica de se fazer história dando ênfase apenas ao passado, ou seja, numa perspectiva continuísta, se buscou fazer uma história das idéias psicológicas, dos seus conceitos, fazendo-se menção a seus “heróis” e “mitos” do passado. Esta forma de perspectivar o passado recebeu o nome, na história das ciências, de internalismo. Diferentemente, numa outra narrativa, denominada externalista, busca-se examinar o “pensamento psicológico no contexto dos desenvolvimentos contemporâneos em outras ciências e, de fato, no meio social, cultural e político em que as idéias psicológicas foram formuladas” (Brozek & Massimi, 1998, p.31).

Nesse sentido, podemos considerar que os historiadores da Psicologia buscam na atualidade, por meio do resgate de documentos, reconstruir modos de pensar e fazer Psicologia, dando voz às práticas e lutas, ao cotidiano e aos sujeitos comuns que ajudaram a construi-la.
Assim, por exemplo, em nosso Laboratório de História e Memória da Psicologia – Clio-Psyché, já foram realizadas pesquisas com diferentes tipos de documentação. O levantamento de arquivos oficiais do Juizado da Infância permitiu recontar uma história da Psicologia no âmbito da Justiça (Bulcão, 2006). Percebemos que a catalogação e análise de contéudo publicado de revistas, psicológicas ou não, possibilitam entender representações e imaginários, bem como a influência de um novo campo do saber sobre a sociedade (Santos, 2011). Entrevistas (documentos orais) e arquivos pessoais recontam histórias de figuras de relevo, não para fazer uma história das grandes personalidades, mas para entender sua inserção na construção do campo da Psicologia, por meio, por exemplo, das práticas, instrumentos e teorias que os influenciaram, além do discurso extraoficial de sua participação na história (Oliveira, 2009). A análise extensiva de produções de campos externos à Psicologia (como a Medicina e a Igreja Católica) de meados do século XIX a meados do século XX oferece bases para uma compreensão da institucionalização da Psicologia enquanto saber autônomo (Jacó-Vilela, 2000).

Um exemplo mais detalhado é a investigação em andamento de Espírito-Santo (2016) sobre a psicologia do esporte. O objeto da pesquisa não foi escolhido objetivamente. Num típico caso de serendipidade, o projeto, que surgia de uma problematização sobre a pouca clareza da fundamentação teórica da Psicologia do Esporte, pretendia retornar ao “marco” de João Carvalhaes (1974), resultou na descoberta inesperada, quase que por acaso, de um possível papel do Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP)v na área desportiva. A partir desta suposição, foi realizada uma pesquisa no Núcleo de Documentação da Fundação Getúlio Vargas (FGV), onde o ISOP funcionou, constituindo-se em fonte terciária para a pesquisa. Foram feitas buscas a partir de termos que relacionavam a instituição a termos da área esportiva, seguindo-se outros termos, a partir de dados que foram surgindo nas pesquisas com os documentos encontrados. As informações foram sendo compiladas aos poucos, através de arquivos do setor de Recursos Humanos e alguns documentos oficiais encontrados.
Outra fonte valiosa para este trabalho foram os cadernos de Alice Mira, esposa de Emilio Mira y López, recentemente digitalizados pela FGV e dos quais nosso Laboratório dispõe de uma cópia. Trata-se de uma compilação feita por dona Alice de recortes de publicações de jornais e revistas de sua época que fizessem referência, de alguma forma, a Emilio Mira y López.
Já sabíamos que Cecília Stramandinoli havia atuado na área. Seus artigos em revistas científicas foram obtidos graças à digitalização deste material, constituindo fontes primárias da pesquisa. A revista Arquivos da Escola Nacional de Educação Física e Desportos (ENEFD) encontra-se disponível no endereço eletrônico do Centro de Memória Inezil Penna Marinho (http://www.ceme.eefd.ufrj.br/docs/mdenefd.html), que guarda, além do periódico na íntegra (entre 1945 e 1972), os relatórios da direção da Escola entre os anos de 1957 e 1965; o decreto-lei de criação; e o primeiro livro de atas.
Os livros escritos por João Carvalhaes (1974) e por Athayde Ribeiro da Silva (sozinho e em co- autoria com Emilio Mira y López) foram tratados como fontes primárias, tendo sido cuidadosamente resumidos para a análise realizada (Mira y Lopez e Ribeiro da Silva, 1964; Ribeiro da Silva, 1967).
Tendo em vista a dificuldade documental em geral, recorremos à memória de personagens ligados direta ou indiretamente à história que estamos contando: Emilio Raphael Mira y López, filho de Emilio Mira y López; Rossely Stramandinoli Matheus Peres, filha de Cecilia Stramandinoli; Regina Sampaio Dias, secretária de Mira y López por dezoito anos. Esta, contudo, não possuía memória sobre os fatos que interessam à pesquisa e nem documentos, apesar de seu esforço em encontrá-los.
Com relação a Athayde Ribeiro da Silva, foram feitas diversas tentativas de contato com jogadores das seleções brasileiras de futebol de1962 e 1966, com as quais trabalhou, e outros profissionais que atuaram com ele em instituições de Psicologia, sendo bem-sucedida apenas a entrevista com o professor Lamartine da Costa, em cujo livro Athayde Ribeiro publicou três capítulos, dos primeiros em psicologia do esporte (Ribeiro da Silva, 1968a; Ribeiro da Silva, 1968b; Ribeiro da Silva, 1968c).
Outra pesquisa de doutorado tem como objetivo refletir sobre a emergência da psicologia jurídica, considerada no Brasil uma área nova, bem recente. Neste sentido, pretende-se realizar uma história comparada das carreiras do brasileiro Eliezer Schneider (1916-1998) e do argentino Plácido Horas (1916-1990), ambos com contribuições campo da Psicologia Jurídica, a fim de contribuir para a compreensão de como este campo se constituiu no Brasil e na Argentina no período de 1940 a 1990 (Vasconcellos, 2016).  A história comparada é um modo específico de se observar uma história em um duplo ou múltiplo campo de observação e “situa-se, portanto entre aqueles campos históricos que são definidos por uma ‘abordagem’ específica – por um modo próprio de fazer a história, de observar os fatos ou de analisar as fontes” (Barros, 2007, p. 9). Tendo isto em vista, este trabalho tem utilizado o método comparado. O levantamento de dados foi estruturado por meio da pesquisa documental, na qual foram utilizadas fontes primárias e secundárias, priorizando a produção dos dois personagens. Tal levantamento foi realizado na Coleção Eliezer Schneider, disponível na Biblioteca CEH-E Clio-Psyché, da UERJ, e no Acervo Plácido Horas, na Universidad Nacional de San Luís.
Para Veyne (1998, p. 118), “só a história comparada permite escapar à ótica das fontes e explicitar o não factual”. Desse modo, ao compararmos duas trajetórias, podemos gerar conhecimentos que ultrapassem os marcos institucionais. Além disso, pretende-se recuperar uma memória histórica, valorizando as influências comuns e questionando a naturalização das representações acerca do campo da Psicologia Jurídica.
Outra tese de doutoramento ainda em confecção é uma investigação historiográfica sobre a constituição do investimento evangélico pela Psicologia no Brasil. Degani-Carneiro (2016) entende por “investimento evangélico” os mútuos interesses e apropriações entre o campo religioso evangélico/protestante e a Psicologia que se expressam no número cada vez maior de profissionais e instituições que articulam estes discursos acadêmico/profissional e religioso. Tais apropriações se efetuam de formas distintas, através tanto da incorporação de discursos e princípios teóricos dos saberes “psi” em literatura cristã e na prática ministerial de aconselhamento por parte de pastores e outros líderes no campo evangélico.
Neste sentido, uma das faces mais visíveis da articulação entre o campo evangélico e o saber psicológico são as atividades de ensino teológico, ministradas por seminários, faculdades confessionais e outros institutos de educação superior, mantidos pelas igrejas evangélicas. Nossa questão é: em que período e em quais condições históricas e culturais começaram a circular conteúdos psicológicos nos currículos de formação teológica evangélica no Brasil?
Esta investigação se encontra na etapa de coleta de dados. Seu recorte temporal situa-se entre 1950 e 1990. Os métodos empregados são: a) pesquisa bibliográfica e documental, aqui incluídos tanto os currículos de formação nas instituições Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil (STBSB) e o Instituto Batista de Educação Religiosa (IBER), quanto as publicações batistas, como materiais publicados para uso em educação religiosa, e; b) entrevistas com ex-professores(as) e alunos(as) das instituições citadas.
A busca tem sido feita nos currículos de formação das duas instituições visando levantar: quais disciplinas de Psicologia existiam; quais os seus nomes; quais seus conteúdos e ementas; quais livros eram utilizados e de que forma (como manuais? Como referências complementares?); quem eram os professores que a lecionavam etc. Além de disciplinas, nossa hipótese é de que a Psicologia estivesse inserida em outros tipos de atividades, como programa de aconselhamento psicológico/vocacional e realização de testes psicológicos na seleção de alunos.
Das publicações batistas, destaca-se O Jornal Batista, a mais longeva dos batistas brasileiros, editada desde 1901, cujo acervo está disponível em http://www.batistas.com/index.php?option=com_wrapper&view=wrapper&Itemid=95
A investigação possui um caráter exploratório, na medida em que se trata de um tema não investigado pela literatura, seja no campo da Psicologia ou das Ciências da Religião. Assim, a delimitação de outras fontes e recortes de pesquisa mais acurados será estabelecida de acordo com os resultados iniciais da investigação documental, notadamente após o mapeamento do tipo de fontes disponíveis e de seu alcance temático e cronológico.
Tal pesquisa se propõe à utilização da metodologia histórica como forma de compreensão do presente, de problemas de pesquisa relevantes na contemporaneidade, qual seja os limites entre a apropriação de saberes psicológicos por contextos religiosos. Compreendendo as práticas religiosas como produções históricas e culturais concretas, interessa-nos notadamente investigar de que formas, sob quais condições e com quais objetivos institucionais ocorreu a apropriação da Psicologia no STBSB e no IBER, bem como relacionar tais práticas com o cenário histórico do período, notadamente com o contexto político-social brasileiro e com as transformações no campo evangélico.
Um trabalho já concluído é o de Goés (2016), sobre a trajetória profissional de Gioconda Mussolini (1913-1969). Tal estudo teve o objetivo de compreender a história da Psicologia em São Paulo nas décadas de 1930 a 1960. Essa ideia surgiu ao encontrar na literatura vestígios da participação de Gioconda como membro-fundadora da Sociedade de Psicologia de São Paulo, criada em 1945. Esse fato constituiu-se como um terreno fértil de investigação, visto que a criação do primeiro curso de graduação e a regulamentação da profissão de psicólogo ocorreram entre o final dos anos de 1950 e o início da década seguinte. O estudo da trajetória de uma personagem, desconhecida do campo de atuação da Psicologia, proporcionou perceber outro modo de se fazer Psicologia na época. Nesse sentido, criou-se a possibilidade do aparecimento de uma outra história da Psicologia, com instituições e atores antes não mencionados.
Para este trabalho, foi necessário recorrer ao Centro de Documentação da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de São Paulo, bem como ao acervo da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, onde encontramos diferentes documentos acerca de Gioconda – seu curriculum, programas de cursos etc. Recorremos também a comentadores da história das ciências sociais no Brasi, bem como da construção dos laboratórios, pois Gioconda formou-se no Instituto de Educação Caetano de Campos que naquela época possuía um importante laboratório experimental com aparelhos e instrumentos para examinar e medir os fenômenos fisiológicos, psicológicos e antropológicos (Centofanti, 2006).
Uma fonte importante foram os livros e artigos publicados por Gioconda. Os programas das disciplinas de Sociologia e Antropologia que lecionava apontam que nelas abordava temáticas e perspectivas teóricas na interface com a Psicologia. Em seu trabalho de pesquisa com comunidades pesqueiras essa interface se fez presente. Ao buscar explicar como era a recepção dos pescadores a uma nova cultura de pesca (Mussolini, 1980), fez uso de referenciais da história da pesca no país, sobretudo no litoral paulista, dos aspectos geográficos dos lugares de realização da atividade pesqueira, dos aspectos sociais e culturais com o auxílio de pesquisas na Sociologia e Antropologia. Mas também se referiu às emoções, sentimentos e pensamentos dos pescadores, numa referência às suas leituras em Psicologia. Suas pesquisas, assim como sua formação acadêmica, apontam para a existência de uma prática científica que privilegiava a interdisciplinaridade e o cotidiano da realidade brasileira. A Psicologia, da qual Gioconda Mussolini se utilizou e ajudou a construir, estava na vertente da compreensão dos fenômenos sociais a partir da análise dos vários elementos que compõem uma dada realidade.
Por último, há que se destacar ainda, no caso brasileiro, que, para o fortalecimento do campo da história da psicologia, foi muito importante o apoio do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Sua valorização da memória da Psicologia no Brasil produziu materiais que concretizam novos documentos de pesquisa. Em parceria com a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP), que desde 1996 mantém um Grupo de Trabalho em História da Psicologiavi, vêm sendo produzidos trabalhos que integram o projeto “Memória da Psicologia Brasileira”. Alguns frutos deste trabalho conjunto nos últimos anos são:

a) o Dicionário Biográfico da Psicologia no Brasil – Pioneiros (Campos, 2001), que reúne uma coleção de verbetes sobre figuras importantes para a construção da Psicologia em nosso país;

b) o Dicionário Histórico de Instituições da Psicologia Brasileira (Jacó-Vilela, 2011)composto por verbetes sobre instituições de destaque na trajetória histórica de consolidação da Psicologia no Brasil;

c) a coleção Clássicos da Psicologia Brasileira, que reedita alguns livros pioneiros, porém muitas vezes caídos no esquecimento;

d) a coleção Pioneiros da Psicologia no Brasil, constituída por diversos livros que contêm uma biografia mais aprofundada de nomes como Eliezer Schneider e Nise da Silveira;

e) uma coleção de vídeos biográficos sobre personagens como Paulo Rosas, Emilio Mira y López, Madre Cristina e Franco Lo Presti Seminério.

A existência de diversos trabalhos de reconstrução e preservação da história da Psicologia no Brasil mostra, mesmo que implicitamente, a importância da organização sistemática do material coletado, como nos indicam Rosa, Huertas & Blanco (1996):

Entre las labores que ha de realizar, está la de poner orden en esa masa de información de manera que pueda ordenar su accesso ulterior a esse material, clasificándolo, extrayendo datos de su propia ordenación, haciendo así posible dar cuenta de su uso a terceros (Rosa, Huertas & Blanco 1996, p. 157).

Dois exemplos importantes a esse respeito são o nosso Laboratório de História e Memória da Psicologia – Clio-Psyché (cujos trabalhos temos relatado neste texto) e o Centro de Documentação e Pesquisa Helena Antipoff, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em Belo Horizonte/MG. Não são os únicos, como se pode verificar em Klappenbach & Jacó-Vilela (2016). Entretanto, é importante ressaltar que estes são trabalhos de longo prazo, de coleta e catalogação de documentos, que integram um rico acervo em História da Psicologia no Brasil, e que, ao oferecerem um banco de dados de fontes primárias para os que desejam estudar pontos específicos, permitem recontar histórias, práticas, saberes.

Considerações finais

Se a história nos parece uma forma de buscarmos compreender e encontrar alternativas para os problemas do presente, seu principal objetivo não é, portanto, o passado, mas, sim, aquela realidade que vivemos hoje, com suas perspectivas, contradições, objetivos e dificuldades. Interessados que somos nos problemas que nossa vida cotidiana nos apresenta, recorremos ao passado. Não se trata, aqui, de uma história de continuidades. É a perspectiva de que podemos encontrar lá atrás algumas condições que possibilitaram a emergência daquilo que pretendemos compreender hoje. Como nossos antepassados vivenciaram/enfrentaram tais condições? Como foi se constituindo este novo percurso? Que rupturas ocorreram, que condições existiam? Que atores foram relevantes, sejam eles pessoas, instituições, catástrofes climáticas, livros etc. etc.?
Para isto, a Nova História possibilita ferramentas e modos de compreensão que ultrapassam, em muito, os limites de uma história tradicional. O simples alargamento das fontes de investigação cria um novo universo investigativo. Novas perspectivas de interpretação permitem que a historiografia se construa sob diferentes vieses, não mais só o positivista.
Neste sentido, a historiografia da psicologia tende a ser mais rica e mais plural. Esta é a aposta de nosso Laboratório.

 

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NOTAS

i É importante ressaltar que esta classificação é apenas didática; do contrário, estaríamos contradizendo os preceitos da História Nova.

ii Na Biblioteca de nosso Laboratório, estes trabalhos são catalogados como “História da Psicologia – Comentadores”.

iii Uma das pesquisas que realizamos gerou um guia bibliográfico, disponível em http://www.ims.uerj.br/pesquisa/psicorio/

iv Um exemplo semelhante ilustra o belíssimo História da vida privada no Brasil, onde é feita a descrição de uma foto do senhor e seus escravos, supondo-se a situação do momento em que ela foi realizada, de acordo com a técnica fotográfica da época (Alencastro & Novais, 1997, p. 19).

v Inaugurado em 1947, no Rio de Janeiro, o ISOP foi uma instituição de extrema relevância no cenário brasileiro, tornando-se referência em psicotécnica no país, porém sem nunca ter sido referida como atuante com relação à Psicologia do Esporte.

vi Neste momento, existem dois grupos de trabalho sobre a temática na Anpepp: o já citado Grupo de Trabalho em História da Psicologia e outro, mais novo, intitulado Grupo de Trabalho em História Social da Psicologia.

 

 

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